(J. R. Guzzo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 12 de abril de 2025)
De infâmia em infâmia, o sistema judicial brasileiro construiu nos últimos anos o que a violação serial, sistêmica e mal-intencionada da lei sempre acaba construindo nos regimes totalitários: a cessação dos serviços de fornecimento de justiça por parte do Estado. Mas o Brasil, sendo o Bananistão que geralmente é, foi além disso. Não só privatizou o Poder Judiciário em favor dos magistrados e suas facções políticas. Reinventou-se como uma palhaçada geral.
Nada poderia atestar de forma tão óbvia a comédia a que foi reduzido o Judiciário brasileiro do que a prodigiosa história do juiz de São Paulo que passou no concurso público para a magistratura, deu sentenças durante 30 anos e se aposentou no cargo (salários de fevereiro último: R$ 166 mil) usando, o tempo todo, um nome falso. Na Justiça paulista ele sempre foi o doutor Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, e é nesse nome que estão registrados os milhares de despachos que deu. Na vida real é apenas o José dos Reis, de Águas da Prata.
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Agora, com a descoberta da fraude, Lord Wickfield sai dos sagrados anais da Justiça paulista. Em seu lugar, entra o doutor Zé. Sinceramente: dá para levar a sério um sistema que, além das “audiências de custódia”, do flagrante perpétuo do ministro Moraes e da “saidinha” para criminosos, faz o papel de palhaço para um juiz? Nada menos que um juiz, que falsifica o seu próprio nome durante 30 anos — e só foi pego por um descuido que ele mesmo praticou junto aos serviços policiais de identificação?

Por que o juiz que não existe é melhor que os ministros do STF
O pior são as perguntas que se poderia fazer em seguida. Tudo bem. O doutor Zé não pode assinar sentenças com o nome de doutor Wickfield. Mas, num plano ideológico-inclusivo, digamos, porque raios ele não teria o direito de se identificar com um barão inglês — se tantos cidadãos que se chamam Sebastião, por exemplo, têm o direito de se identificarem como Jéssica? O próprio STF, aliás, parece decidido a discutir seriamente se as palavras “pai” e “mãe” devem ou não continuar a aparecer nas certidões de nascimento. A Unicamp acaba de criar cotas para quem se identifica como transgênero.
Mais que tudo, a realidade mostra que o juiz em questão, goste-se ou não dele, foi aprovado limpamente no concurso para a carreira — enquanto o ministro Dias Toffoli levou pau duas vezes seguidas e está no Supremo há 16 anos. Não perdoou multas de R$ 20 bilhões de empresários corruptos, nem anulou suas confissões de culpa. Não condenou a 14 anos de prisão a “cabeleireira golpista” do batom. Sua mulher não defendeu causas julgadas por ele. Talvez o juiz que não existe seja melhor do que os juízes que existem.

